quarta-feira, 27 de julho de 2011

Crônicas dos Intocáveis, Parte 2

Alguns sábios dizem que todos nós temos três coisas que podemos fazer bem, três dons que são únicos. Normalmente, os dons se desenvolvem cedo, desde criança os pais percebem que um filho constrói casinhas de blocos melhor que o outro, que uma filha faz bolos mais saborosos que a outra, que o filho do vizinho é mais carismático que o seu. O homem divide esses dons em sete categorias, chamou de sete áreas da inteligência humana: Linguística, Lógica, Motora, Espacial, Musical, Interpessoal e Intrapessoal.

Mas e o que fazer com seu filho caso ele não apresente nenhum dom, caso ele não saiba fazer nada de especial? Minha vontade de te fazer pensar, caro interlocutor, vai além: o que você faria caso não soubesse em que é bom? O que faria se não pudesse se enquadrar em nenhuma das teóricas sete inteligências do homem? Como se sentiria se não houvesse nada que o fizesse ser lembrado pelas outras pessoas?

Pois essa é a história de Clara, uma jovem camponesa que não fazia nada de diferente e não suportava mais sua vida sem perspectiva, vivendo sempre à sombra de alguém melhor, mais bonito, mais inteligente ou mais esperto. Às vezes ela até torcia para ser o pior, afinal seria marcada por algo, deixaria de ser “neutra”.

Clara não era a mais feia, porém também não era a mais bela, não era uma cabeça oca, porém também não era a mais inteligente de sua turma na antiga universidade. Ela era neutra em tudo, desde as preferencias politicas e literárias até sua religiosidade. O que, segundo Clara, provava que ser “normal” não é o ideal em qualquer tipo de sociedade, ninguém consegue ser normal, pois vai contra a vontade básica do ser humano de ser reconhecido.

Clara já estava com vinte anos e nessa idade uma moça já deveria ter quatro filhos e estar com os seios a pelo menos três centímetros abaixo do ponto inicial antes do casamento. O que dava à garota certa alegria em, como diziam os familiares, estar encalhada. Com muito sacrifício a mãe de Clara conseguiu uma consulta de trinta minutos com o rei.

Todos os dias, o Rei dedicava-se a aconselhar os súditos e a tirar dúvidas, para isso bastava que a pessoa fosse ao castelo e agendasse um dia e horário. No caso de Clara, a mãe conseguiu, pois clara era prima de um amigo de um colega de universidade de um vizinho do meio-irmão do padrasto do tio do sogro do neto do bobo da corte, e como em todas as situações da vida, se você tem “contatos” consegue as coisas, como reuniões com o rei, de maneira mais fácil que os reles mortais sem amigos influentes.

O pai de Clara, então, emprestou um cavalo à filha que tomou seu rumo para o castelo, saindo das terras da família, atravessando os campos de trigo que nessa época do ano estavam dourados premeditando uma boa colheita, passando pelo grande mercado de trocas onde comprara seu primeiro novelo de lã e par de agulhas de tricô até chegar a uma pousada onde descansaria. Não sei se sempre você, caro interlocutor, morou perto de onde queria chegar, nossa amiga Clara fez uma viagem de meio dia a cavalo e já estava exausta, pegou sua mala e rumou para seu quarto pequeno e escuro após deixar o cavalo aos cuidados do dono da pousada.

O dia começou alegre, no beco atrás da pousada havia uma feira com música, barraquinhas de comida, venda de quinquilharias e pessoas andando tranquilas e felizes. Clara pulou da cama, desceu as escadarias da pousada e rumou para a feira. Sem pestanejar, Clara comprou logo uma cerveja e um pão doce, ainda estava tomando a cerveja quando parou para escolher um novelo de lã quando um rapaz parou ao seu lado.

- O que seu marido pensaria se visse a esposa tomando cerveja antes do almoço?- o rapaz se debruçou sobre a barraca com os novelos – Provavelmente você seria castigada, talvez até devolvida aos pais!

Clara pensou milhares de coisas para responder: palavrões, ironias, piadas, mas apenas contou até três, mentalmente, e tomou dois longos goles, pagou pela lã escolhida e seguiu para a barraca das cervejas, ignorando o rapaz. Nem sempre a tradição de um local se refere à preservação de valores e cultura, naquele reino, se uma mulher fosse denunciada por qualquer crime, ofender um homem era considerado crime, seria oferecida como escrava ao que fez a denuncia e poderia ser vendida sem o consentimento dos pais. A única salvação seria se ela fosse casada, nesse caso o marido já é tomado como responsável pela esposa e deverá defendê-la e arcar com as consequências de seus atos. Então as moças sem marido, como Clara, deveriam apenas contar até três infinitas vezes se necessário.

 - O que aconteceu com você, seu marido mandou cortar sua língua?- O rapaz entrou na sua frente – Aqui neste reino não gostamos de moças desordeiras e que se comportam como rapaz. Seria mais simpático se você me disser quem é seu marido e porque está andando sozinha.

- Senhor, meu nome é Clara, meu pai é o mensageiro que mora no feudo das macieiras e estou aqui para me consultar com o rei. Não possuo marido e não me comporto como rapaz, apenas estava bebendo cerveja como todas as mulheres que estão nessa feira. - O rapaz pareceu precisar de tempo para traduzir o que ela havia dito, Clara estranhou o silêncios que se estabeleceu por alguns segundos, mas aproveitou a deixa para fugir – Agradeço a preocupação e prometo não incomodar mais o senhor.

Clara correu o mais que pode para entrar o mais rápido possível na pousada se seu pai imaginasse que quase discutira com um homem em público o dia não teria horas suficientes para cumprir o castigo de ajoelhar no milho. Dentro da pousada, Clara contava à esposa do dono o ocorrido quando viu o rapaz subindo a rua olhando para os lados.

Quando a tarde estava no fim, clara tomou o rumo do castelo, após trinta minutos estava em um salão enorme com grandes janelas e muitas pessoas. Pelo que pode perceber a maioria das moças estavam lá para pedir um marido ao rei. Aparentemente era a noite das moças encalhadas. Clara achou estranho, pois, de acordo com a tapeçaria, o rei estava disponível para dar conselhos à população e não para fazer favores. Teoricamente arranjar um marido para a filha é obrigação dos pais ou do irmão mais velho.

- Próximo!- um criado puxou Clara pelo braço e a empurrou em uma sala escura com vários tronos e uma cadeira, trancou a porta e ficou do lado de fora. Apenas um dos tronos estava ocupado e a garota não conseguia ver o rosto, mas sabia que se tratava de um homem.

- Diga seu nome e problema. – o estranho que estava no trono possuía uma voz familiar, porém ainda não era possível ver quem era.

- Eu sou Clara e quero um conselho.

- Sente-se- Clara obedeceu- Aqui diz que você já tem vinte anos, ainda é solteira e sem filhos está correto?- Clara apenas balançou a cabeça confirmando – Você deveria vir aqui e pedir um marido, sem um você não é ninguém, não pode ter filhos, não terá dinheiro e nenhum rei dará terras a uma mulher solteira. - nessa hora o homem se mexeu e Clara pode ver seu rosto, era o mesmo rapaz da feira.- Você está me ouvindo?

- Você não é o rei! Você é o rapaz que estava na feira hoje de manhã!- Clara se levantou e toda a sala ficou escura, não era possível ver um palmo a frente de seu nariz. A garota apenas conseguia ouvir vozes.

- O que eu faço ela me reconheceu, será que o feitiço não está funcionando mais? - um deles disse.

- Você contou seu nome a ela? - uma outra voz sussurrou.

-Não seja estúpido, claro que não! - o outro voltou a responder.

-Será que alguém contou para ela lá no salão? - havia mais alguém na sala, agora eram três.

-Ninguém contaria, não são tolos! - agora Clara sabia que haviam pelo menos quatro pessoas na sala.

- Ela não é uma feiticeira? - agora são cinco pessoas!

Clara sentiu a bolsa se mover, atirou o novelo em direção às vozes e a luz se acendeu. Clara estava cercada por vinte homens e um deles estava com a lã enrolada no pescoço, lutando para se livrar.

- Quem são vocês?

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